Miracleman é um personagem não tão reconhecido porém incrivelmente importante para os quadrinhos, o cinema e diversas mídias de entretenimento, tudo por causa do arco de historias escrito por Alan Moore nos anos 80, e acho que pode ser legal fazer uma pequena matéria sobre o herói "perdido" da era de ouro.
Tudo começou como quase tudo começou em revistas de super herói, com o Superman. Depois da criação e do Superman em 1938 na revista Action Comics, o mundo viu um novo gênero de historias, um novo tipo de personagem, que fez sucesso, muito sucesso.
O personagem vendia tanto que, obviamente, outras empresas logo iriam criar seus próprios Supermen, personagens semelhantes que pudessem atrair uma parcela de público, mas apenas aqueles com um grande diferencial iriam fazer sucesso similar, ou maior, e foi o caso do Capitão Marvel, criado em 1939 pela Fawcett Comics.
O Capitão Marvel era meio semelhante com o Superman em diversos aspectos, ele é forte, rápido, e sua identidade secreta é um repórter, mas qual o grande diferencial? A tal identidade secreta, Billy Batson, era apenas uma criança, um garoto de 8 anos, que com uma palavra magica, "Shazam!", se transforma no poderoso herói Marvel.
Durante os anos 40 o Capitão Marvel se tornaria tão popular quanto o Superman, seria exportado para a Europa, e inclusive venderia mais edições mensalmente do que o azulão.
O herói com o poder dos deuses tinha toda uma família de personagens, Mary Marvel, Shazam Junior, vilões caricatos, e até um tigre super poderoso.
Em 1941 a National Comics, empresa que publicava as historias do Superman e que eventualmente se tornaria DC Comics, processou a Fawcett, acusando a empresa de que o Capitão Marvel era uma copia do Homem de Aço, e dos direitos autorais da empresa. Com base nisso a National venceu o processo, eu não sei se era verdade, mas fica pra você decidir.
A vitória dos tribunais da National Comics terminou com a Fawcett concordando em acabar com a publicação do Capitão Marvel em 1953, e pouco tempo depois empresa toda encerraria sua divisão de historias em quadrinhos, culminando com a venda de todos os seus personagens, incluindo o Capitão Marvel, para a DC Comics.
Porém no Reino Unido, uma pequena companhia chamada L. Miller & Son, publicava as aventuras do Capitão Marvel mensamente lá pela Europa, e eles estava fazendo muito dinheiro com essas publicações entre os britânicos, até 1953, onde eles se viram sem nenhum material novo pra publicar.
Antes vale a pena explicar que o Reino Unido tinha uma proibição em importar revistas americanas, então empresas britânicas compravam os direitos e republicavam as historias originais por lá em preto e branco. E a L. Miller & Son tinha os direitos sobre diversas linhas de personagens da Fawcett Comics durante os anos 40 e 50.
A solução para a falta do Capitão Marvel? Copiar o Capitão Marvel, claro. Em 1954 eles lançaram uma versão própria do herói, com o nome completamente diferente de... Marvelman. Escrito e roteirizado pelo artista Mick Anglo.
Na edição #24 da HQ Captain Marvel, os ingleses incluíram alguns quadros mostrando Billy Batson e Freddy Freeman, respectivamente as identidades secretas de Capitão Marvel e Capitão Marvel Jr., manifestando seu desejo de abandonar suas carreiras de heróis pra levar vidas normais. No entanto, pra felicidade geral do Reino Unido, sucessores dignos foram encontrados.
Tudo então seguia meio que igual, o Billy Batman se tornou Mickey Moran, a palavra mágica foi de "Shazam" para "Kitoma"(Atomik ao contrario). Os coadjuvantes voltaram todos também, Marvel Jr. foi pra Young Marvelman, Mary Marvel virou Kid Marvelman.
Na HQ, um jovem repórter chamado Micky Moran encontra um astrofísico, em vez de um mago, que lhe dá superpoderes baseados na energia atômica em vez de mágica. Para se transformar em Marvelman, ele fala a palavra "Kimota". Marvelman foi acompanhada por Dicky Dauntless, um mensageiro adolescente que se tornou o Jovem Marvelman, e o jovem Johnny Bates, que se tornou Kid Marvelman; ambas as palavras mágicas eram "Marvelman".
O personagem fez muito sucesso durante os anos 50 por toda o Reino Unido, com suas historias fantásticas enfrentando poderosos vilões e salvando o mundo. O personagem foi republicado em diversos países da Europa, e até no Brasil, onde foi publicado pela RGE.
A publicação brasileira merece um paragrafo só dela, como as historias do Capitão Marvel estavam atrasadas em relação aos Estados Unidos, o Marvelman foi publicado dentro das revistas do Capitão Marvel, onde teve seu nome alterado para "Jack Marvel", inclusive as iniciais "MM" no peito do herói foi trocado pelo "JM" na versão nacional.
O sucesso europeu do Marvelman durou até 1959, quando a proibição em importar material estrangeiro acabou, então nos anos 60 os quadrinhos preto e branco do herói atômico não seriam páreos para os heróis totalmente coloridos da era de prata da Marvel e da DC Comics. Com isso, as vendas começaram a cair, até que os títulos do herói e da sua família de personagens foram sendo diminuídos e finalmente cancelados em 1963.
Isso seria o fim de uma historia realmente curiosa sobre um personagem [Marvelman] criado como uma cópia descarada de outro herói [Capitão Marvel] que foi processo por supostamente estar copiando outro herói [Superman] (e nem era verdade), mas uns 20 anos depois do fim das publicações, é aqui que as coisas ficam realmente interessantes.
Em 1982 o editor inglês Derek "Dez" Skinn lançaria uma antologia em quadrinhos chamada "Warrior", e conseguiu dar um jeito meio malandro de reviver um antigo e glorioso herói britânico, o Marvelman. Para tal tarefa, Dez convocou um jovem de 29 anos e incrível escritor chamado Alan Moore, e o desenhista Garry Leach. Seu trabalho nessa nova revista mudaria o gênero de quadrinhos de super heróis, os heróis e a indústria para sempre.
Logo de cara essa nova versão do personagem é completamente diferente, temos agora um personagem adulto, num mundo real, aparentemente igual ao nosso, e nele Moore desejava redefinir o personagem completamente.
Mickey Moran agora, como eu já falei, era um repórter adulto, casado e tinha constantes sonhos de memórias apagadas de sua mente, seus sonhos eram aventuras, nos anos 50, como Marvelman, porém ele não conseguia se lembrar da tal palavra mágica que dava os poderes.
As recordações de Mickey Moran eram as histórias criadas por Mick Anglo e seus colaboradores publicadas por L. Miller & Sons. Após alguns eventos iniciais com terroristas, Mickey Moran lê algo que desperta sua memoria, ele se lembra da palavra magica, e ao dizer "Kitoma" mais uma vez, ele realmente se transforma no poderoso herói que era no seu passado.
Novamente transformado no galante e herói, ele volta correndo pra casa. Lá chegando, conta tudo à sua esposa que, após ouvir estarrecida, cai na gargalhada. Afinal, eram histórias sem pé nem cabeça como as escritas nos gibis para entreter crianças. Com o desenrolar da trama de Moore, os leitores ficam sabendo que as antigas aventuras haviam sido implantadas por cientistas trabalhando pra um projeto governamental secreto. Era tudo falso, no entanto, Mick Moran realmente ganhava superpoderes quando dizia a palavra Kimota. Aí tem início, uma das mais geniais HQs de todos os tempos.
Miracleman e sua família de heróis foram criados em um laboratório, usando tecnologia alienígena, por um cientista assassino, estuprador e ex-Nazista. O objetivo era dar ao governo britânico uma alternativa à bomba atômica na forma de um super ser. Então suas memórias, as antigas revistas dos anos 50, eram fantasias, programas para testes e controle mental.
Depois dessa mudança chocante na historia do personagem temos finalmente a grande sacada de Alan Moore, no seu arco em Marvelman ele faria a seguinte pergunta aos leitores e a só próprio: O que aconteceria se super heróis existissem de verdade no mundo real?
Hoje em dia é muito comum vermos realismo em todas as historias em quadrinho, ou no cinema, na tv, em todo lugar, achamos mais interessante que nossos heróis sejam mais humanos, tenham mais emoções, fraquezas, medos, ou que nossos vilões tenham motivações que façam um mínimo de sentido, que sejam reconhecíveis para o público. Queremos ver as consequências dos atos desses heróis e vilões se digladiando entre as cidades. E sabem quem foi a primeira pessoa a realmente explorar esses temas de maneira séria e bem escrita? Alan Moore, nos anos 80 com seu Marvelman.
Na medida que a historia avança vemos as horríveis consequências dos atos desses personagens cheios de poderes, a mudança completa da sociedade e do modo como vivemos, a existência desse tipo de super poder no mundo não deixa tudo igual como nos filmes da Marvel, mas muda tudo, e sem chance de retorno. Marvelman olharia para a humanidade como nós olhamos para simples animais, e a humanidade veria esses personagens como deuses ou demônios capazes de uma destruição sem tamanho.
A revista Warrior porém não era sucesso de vendas, o que acabou com seu cancelamento, interrompendo as historias do Marvelman por um tempo. Em 1985 a editora americana, Eclipse Comics, levou, para os Estados Unidos, as histórias de Marvelman. Porém como o nome "Marvel" era propriedade da Marvel Comics, a Eclipse se viu obrigada a mudar o nome do personagem, que agora passa a se chamar, finalmente, Miracleman.
Com o sucesso das republicações, a Eclipse conseguiu, junto com Alan Moore e os desenhistas Steve Bissete e John Totleben, terminar seu arco de historias com o herói. Depois dele, Neil Gaiman assumiu o titulo até 1994, quando a Eclipse Comics faliu.
Por isso Miracleman é um personagem tão importante e curioso na historia das revistas em quadrinhos, seu arco escrito por Alan Moore pavimentou o caminho para que o roteirista voltasse nessa temática de heróis no mundo real, para que lançasse em 1986 o clássico "Watchmen", pela DC Comics, vale citar que Watchmen também seria um relançamento de antigos super heróis dos anos 50, (esses personagens da editora Charlton Comics) comprados pela DC, mas que devido ao teor da historia, foi solicitado que Moore criasse novos personagens para sua historia.
Hoje em dia a Marvel Comics tem o direito sobre o personagem, e você pode encontrar encadernados dessas historias para compra na internet com relativa facilidade, mas com o precinho "padrão governo bolso": absurdo. Eu acho uma peça fundamental pra você que está conhecendo esse mundo de super heróis agora, pegar pra conhecer de onde essas ideias vem, e como outros artistas foram pegando esses elementos para criar novas aventuras e novos personagens hoje em dia.